sábado, 6 de junho de 2009

O espanto das coisas



(exercício das palavras obrigatórias: JANTAR, CASTIGO, PERPLEXA, PORTÃO, ELOGIO)


E aquela tarde começou cedo. A expectativa em relação ao que poderia acontecer ia crescendo, multiplicando-se e, finalmente, atingiu o seu epílogo: o jantar ia ser servido! Tamanha surpresa no que toca àquela refeição, apenas poderia ser tida em conta pelo que todos já sabiam: ali comia-se cedo e bem, mesmo muito bem. O facto de se comer cedo, não era o que mais nos prendia, mas sim a perspectiva cada vez mais concreta de um repasto digno de uma qualquer família real, alojada num sumptuoso palacete como, aliás, poucos até então tinham conhecido.
Já a noite ia longa e as conversas não saíam do mesmo: pássaros, cavalos e a criança que viria, mais percalço, menos percalço, a ser rei. Daquela refeição impaciente, apenas um elogio envergonhado de alguém que, olhando para tamanho castigo, que se resumia às conversas forçosamente cordiais, achou por bem quebrar o gelo que se ia criando à medida de cada palavra vã, de cada frase obsoleta, de cada estirada romanticamente absurda, e lá chamou a si a difícil tarefa de enaltecer o tal manjar.
Enquanto esperava ao portão pela boleia, algo deixou perplexa a colega dos amigos do nosso ilustre anfitrião. O barulho que perpetrava pelos ouvidos já fartos de tanta retórica antecipadamente gasta, assemelhava-se ao pregão de quem não tinha mais nada para vender ou trocar. Era a própria morte a chegar.


Fernando Marta

...que?

Difícil a tarefa pedida. Obrigando-me a usar o gerúndio, essa forma verbal tão caída em desuso, essa forma verbal tão esquecida. Mas, e se calhar por causa do gerúndio, querem agora obrigar-nos a falar e a escrever um português abrasileirado. Esse é um fato, um ato sem escolha nem vontade.
E para além do samba, do Scolari, da caipirinha e do Carnaval vamos passar a ter uma língua comum e nada banal, um pouquinho até original.

Marta Silva

meta-exercício

Eu posso escrever sem a palavra mencionada pelo Luís! Basta apetecer-me e fá-lo-ei com muito prazer. E, apraz-me fazê-lo.
Essa palavra serve para se referir a alguém ou a algo, relacionado com um sujeito já mencionado, então, é tão simples como: nunca referir ninguém nem nada e, pronto já está.
Ela não me impede de mandar ninguém à m..., ou passear, só vão se quiserem! Ou melhor dizer gosto de ti, detesto-te...
Se tivessem pedido para escrever sem verbos, por exemplo, a coisa tornar-se-ia mais árdua, ora tentem e vejam se dá algo de compreensível?
Eu fi-lo e, não fora eu a fazê-lo, nada teria percebido. Não se sabe de quem se fala nada das suas acções, intenções, desejos, sentimentos, estados, entre outros...todavia, sem essa palavra proibida consegui comunicar sem dificuldades.
É verdade, conheço uma expressão, cujo sentido só se percebe usando o termo proibido, mas não vou dizê-la.
Pronto, já o fiz e agora?... Já posso pronunciá-la? Ou quê?

Fernanda Dias

texto sem 'que's

E um dia a girafa se viu reflectida nas águas de uma lagoa:

Maldita selecção natural por este pescoço comprido! Malditas folhas, ou malditas as árvores das folhas fora do alcance, altas de propósito para me fazerem também alta e esguia! Qual elegante qual quê?! Elegante é o elefante, por ser gorducho e fofo e saudável e convertível em peluche com certificação da União Europeia, “perfeitamente seguro”, ler-se-ia na embalagem. E uma girafa? Uma girafa só pode ser conotada com coisas desproporcionais como vassouras de piaçá nas mãos do Michael Jordan. Já alguma vez viram um peluche de girafa? Eu já, um dos grandes, típicos dessas feiras de festinha popularucha, a servir de tampão a uma hipopótama na fase de transição menopausica.

Pensou nos anos e maldisse-os por nunca se cansarem de passar por cima de tudo e de todos. Enfim se decidiu suicidar. Lançou-se à lagoa com esse propósito. A água não lhe chegava ao pescoço…

Ricardo Ávila

AFORISMOS

(sobre Angra do Heroísmo, Traição, Internet e Escrita)



Angra do Heroísmo

A baía de Angra é um pleonasmo insuspeito.


Traição

O homem é um veículo de traição animal.


Internet

A internet é um oceano onde se pode navegar sem ter que tomar comprimidos para enjoo.


Escrita

Tinha doze anos quando descobri a manuscrição.


As receitas médicas seriam mais legíveis se passadas por doentes com Alzheimer.


Gosto de escrita criativa que, porém, não se compara à criatividade da minha escriturária.


Ricardo Ávila


ESCRITA

A escrita come-se, porque ocupa sempre um vazio de quem a lê


ANGRA do HEROÍSMO

Angra, quantos iates são necessários para seres Marina do Heroísmo?

Assunção Melo


INTERNET
Eu interneto, logo existo. Ou não.

ESCRITA
Através do silêncio da escrita, posso fazer um barulho ensurdecedor.

Mário Carvalho



Traição

A ignorância é o analgésico dos traídos.

A beleza da traição só é apreciada se for desconhecida.

Ser traído uma vez é infelicidade, ser traído duas vezes é masoquismo.


Internet

Gostava de conhecer uma mulher pela Internet, sempre gostei de Ovos Kinder.


Escrita

Escrever é soltar-se, ainda bem que não cheira mal.

Poucas coisas me aliviam tanto como a escrita, as outras não digo.

José Gomes


Angra

Numa rua de Angra, se não vires um touro, foge. Ele vem aí.

Escrita

O encanto da escrita está no encanto de poderes pousar a máscara.

Neide Pedroso


Traição

A traição dada não se olha o dente.
Traição, não porque estamos longe mas porque um dia estivemos perto.

Patrícia Caiano


Angra do Heroísmo

Estar em Angra do Heroísmo e ver o Pico do abismo.

Fernanda Dias


Traição

A mulher tem de ter qualquer coisa para além da beleza, por que não um amante?

Escrita

Para se escrever loucamente, não é preciso ser poeta, basta ser maluca.

A escrita proporciona grandes feitos dos loucos.

Cláudia Borges



- Se me traíres responder-te-ei com indiferença. Se me fores indiferente trair-te-ei.

- A escrita é mais fácil quando a caneta não falha.

- Escrever é um acto solitário. A não ser que estejamos num workshop.

- Comecei a escrever quando descobri que era demasiado tímida para cantar.

- Quando a solidão te aperta vai à Internet. Transformas-te num solitário globalizado.

Marta Silva


Não fosse tão fácil escrever, e o futebol teria muitos mais adeptos.

Nascido no meio do capital, o Google é profundamente revolucionário.

Cada tourada à corda, é muito mais do que qualquer touro possa fazer crer.

Em cada passeio há uma surpresa, se não estivermos à espera de tropeçar em mais uma raiz.

O tempo passa, e as Sanjoaninas ficam.

Fernando Marta